Mar minhoto. À região onde Portugal nasceu e de onde se expandiu para sul até onde a terra acaba, sempre com o Atlântico como vizinho, associamos mais o chão verdejante do que o mar alteroso, mas há muito que me intrigava a natureza das comunidades piscatórias da região. O que fazem, como vivem, o que sentem, o que as torna únicas num país cuja dimensão marítima é imensa e onde se pesca de Caminha a Vila Real de Santo António, nos Açores, na Madeira, até nos rios. Que parcela do “Mar Português” é esta? Como é a relação destas pessoas com o mar, feita de um permanente e repetitivo ir e voltar, sob a constante ameaça de por lá ficar, diferente do que faziam os navegantes que partiam rumo ao desconhecido? A conclusão não me surpreendeu. O que há de único no mar minhoto são, sobretudo, as pessoas, como sucederia em qualquer outro local do mundo. E é em torno delas que, sobretudo, se desenvolve este trabalho, esta narrativa, esta recolha documental, também, em que trabalhei ao longo dos últimos meses.
Desta selecção de fotografias sobressai o factor humano, presente até em tudo o que é testemunho material. Os barcos, por exemplo, não só pela forma como são construídos, que também testemunhei, em Darque, mas, por exemplo, pelo que levam de humano, de místico e temeroso nos nomes com que os baptizam, de um modo geral semelhantes aos que encontramos em tantas outras comunidades de pescadores e mareantes. Esta viagem também decorre em terra, mas é feita, sobretudo, a bordo do Deus Quer, do Rumo ao Destino, do Virgem de Fátima, do Esperança, do Invejado, do Mar e Rio, do Noé ou do Calvário da Vida, testemunhos do respeito que esta gente tem pelo mar, ao fim e ao cabo o fio condutor das vidas que levam, mas também da forma como se entregam à providência, seja em súplica ou em agradecimento. Muito do que se encontra no convívio com estas comunidades, e que forçosamente ocupa lugar destacado na narrativa que as imagens constroem, ou ajudam a construir, está, justamente, ligado à religiosidade exacerbada por vidas de constante incerteza, tanto em festas e romarias – registo duas das maiores, a da Senhora da Agonia e a da Senhora da Ínsua – como na iconografia que encontramos a bordo, sendo possível o convívio, numa mesma parede, entre representações da Virgem Maria e, por exemplo, a fotografia do Dr. Sousa Martins, figura destacada de um misticismo popular não sufragado pelas autoridades eclesiásticas.
Mas é também nos próprios homens e mulheres que vemos essa presença incontornável da transcendência, seja nos gestos, nas falas ou na forma como decoram o próprio corpo, das toscas marcas feitas a bordo, tinta injectada em pele curtida, às modernas e perfeitas tatuagens que Bruno, pescador, músico e um de tantos companheiros desta aventura nos mostra: Bruno vive apenas com o seu bulldog, o Borat, mas tem a permanente companhia dos pais, estampados em perfeição no braço direito, e da mãe de Cristo, tatuada nas costas em versão humanizada, bem distinta da palidez irreal que encontramos nas costumeiras representações, pictóricas ou escultóricas, da Virgem. Bruno é, como o disse, um entre tantos companheiros desta aventura, cujos nomes são demasiados para enumerar. Lembro apenas o Hugo, que aproveita os tempos em que o Rumo ao Destino está atracado para procurar nas águas do rio Lima o sustento sazonal que vão dando as lampreias, honro ainda os mestres que me acolheram de coração aberto, como o Alfredo ou o Vítor, filho do Alfredo que cresceu a bordo e virou de bordo para ter o seu próprio rumo, como o Marco ou, ainda a Maria José e o Henrique, unidos por matrimónio tanto em terra como no mar. Deles e com eles se fez o meu trabalho.
É um trabalho, não será de mais repeti-lo, feito de gente de uma ponta a outra, mesmo que as pessoas não apareçam. Tudo é gente. Se um barco de regresso atrai gaivotas é porque homens o encheram de peixe, se as próprias artes da pesca – a cordoalha, as redes, os covos, os anzóis enfileirados em linhas – são fotogénicas, tal devem a quem as criou, fabricou, manuseia. O que aqui temos é a crónica dessa gente, a memória viva e apelativa de pessoas que se sacrificam por um negócio em que o grande lucro cabe a outros, mas que não sabem viver de outro modo que não este, galgando a rebentação para colocar redes e armadilhas. São estes os heróis do Mar Minhoto, não os que partem meses para a pesca longínqua, mas os que, em barcos modestos e parcamente tripulados, não se afastam da costa mais que duas ou três milhas. Tanto pode o mar ser cão nos Grandes Bancos da Terra Nova como ao largo de Viana, de Caminha, de Âncora ou da foz do Neiva. Sempre será temido e amado pelos que nele e com ele se fazem.
Este é, pois, o retrato humanizado de uma parcela atlântica que nos dá robalos, congros, badejos, fanecas, gorazes, negrões, sapateiras, navalheiras, lavagantes, polvos. Vê-los no prato, lembrando os homens e as mulheres que o tornam possível, muda tudo. O sabor das iguarias é acentuado por um tempero que não se compra: o respeito.
Leonel de Castro
Março de 2018
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